domingo, 12 de setembro de 2010

Romance

Aos Imprestáveis














I. O narrador

Traçarei a pena
lembranças de páginas passadas.
Gole a gole arriscarei o risco
página a página do meu rum.

Houveram, naqueles tempos,
borboletas quase roxas
que voavam como ventos.

Do chão era possível vê-las,
revoando suas cirandas,
sem controle dos destinos
como sorrisos de crianças.

Foram pequenos pontos
se desenhando sinuosos
com rastros semelhantes de luz.


















II. A criança

Do outro lado da rua
de sua pequena estatura observava
o mundo pelas pernas.

Iludia a lógica
esbarrando no céu
sendo o seu oposto.

Os riscos de tijolo
faziam calçada alaranjada
mas quando pisava na linha
ela era amarelinha.









III. O palhaço

“São brincadeiras,
apenas brincadeiras”
E eram meus os pesadelos,
o sorriso crescente na noite.

Seu sorriso
sob a mesa seu sorriso
sorrindo mais alto;
surto a cada curto passo
curto passo e era tarde
pra mudar de esconderijo.

Sob a mesa seu sorriso,
a fina fala zunindo triste,
triste e sorrindo:

“Onde se meteu?
Meu doce palhacinho
onde se meteu?
Mamãe, ele morreu?
Mas ele era amigo meu,
mamãe, onde se meteu
meu doce palhacinho?”



Ponho-me toalha afora.
Saco do bolso
um lenço em movimento,
faço sair do tecido...
(ele me lança o seu sorriso!)
seu desenho colorido:
escorro pelo chão
circulinhos vermelhos!

Saco outro lenço,
este negro como fundo de cartola,
limpo o sebo da lente
de seus oculosinhos
e lhe lanço longe o olho
(ele me lança o seu sorriso!)
ele vê tudo o que ele olha.

Mas eram meus os pesadelos,
de outro lenço
tiro o certeiro
sorriso crescente na noite.


















IV. A voz

Era então que as borboletas,
(pelo zelo de suas asas)
invadiam a varanda.

A chuva desmembrava cores
e linhas fugiam nas calçadas,
tintas nas desatentas asas
e até o velho mudava o jeito do olhar.

O antigo arco nos cobria a todos
e uma voz cantava as lendas
do mundo do lado de lá.


























































IV. O velho

A gente o sentia observando,
de um lado e de outro.
O jeito do olhar experiente
vendo no movimento da gente
fotografias sempre sem cores.

Não eram olhos como os outros.
Retinha a luz que vinha
e devolvia a quem o via.

Tremulava na parede,
o reflexo desgostoso,
que ao seu antigo rosto
dava traços intranquilos.

Era por todos já sabido
o inevitável consumo do ar.















V. O homem

O casaco de couro aparecia na neblina
encharcado nos ombros desgastados
os olhos sorriam cúmplices
de brincadeiras que não compartilharia.

Pisava firme o chão
esse seu lugar predileto.
Pela porta seguia reto
para o quarto e, cerrado,
acendia o cigarro.

Rádio ligado para ouvir notícias
complicadas que eu não entendia
e lendo dormia seu sono profundo
como quem desvia do mundo
num sonho muito antigo.



















VI. A mulher que já era poema

Eram seus então os versos:


“Se algum dia eu encontrar
a palavra que traduz
qualquer sentimento puro,
Maria, eu danço na chuva,

sou capaz de casamento...
cadê, cadê o meu pedaço?
Nessas nuvens? Em alguém
por quem todo dia passo?”

Buscava assim a sua Helena.

Admirei de longe a cena
e mais tarde, ao entendê-la,
compreendi então os versos.