Aos Imprestáveis
I. O narrador
Traçarei a pena
lembranças de páginas passadas.
Gole a gole arriscarei o risco
página a página do meu rum.
Houveram, naqueles tempos,
borboletas quase roxas
que voavam como ventos.
Do chão era possível vê-las,
revoando suas cirandas,
sem controle dos destinos
como sorrisos de crianças.
Foram pequenos pontos
se desenhando sinuosos
com rastros semelhantes de luz.
II. A criança
Do outro lado da rua
de sua pequena estatura observava
o mundo pelas pernas.
Iludia a lógica
esbarrando no céu
sendo o seu oposto.
Os riscos de tijolo
faziam calçada alaranjada
mas quando pisava na linha
ela era amarelinha.
III. O palhaço
“São brincadeiras,
apenas brincadeiras”
E eram meus os pesadelos,
o sorriso crescente na noite.
Seu sorriso
sob a mesa seu sorriso
sorrindo mais alto;
surto a cada curto passo
curto passo e era tarde
pra mudar de esconderijo.
Sob a mesa seu sorriso,
a fina fala zunindo triste,
triste e sorrindo:
“Onde se meteu?
Meu doce palhacinho
onde se meteu?
Mamãe, ele morreu?
Mas ele era amigo meu,
mamãe, onde se meteu
meu doce palhacinho?”
Ponho-me toalha afora.
Saco do bolso
um lenço em movimento,
faço sair do tecido...
(ele me lança o seu sorriso!)
seu desenho colorido:
escorro pelo chão
circulinhos vermelhos!
Saco outro lenço,
este negro como fundo de cartola,
limpo o sebo da lente
de seus oculosinhos
e lhe lanço longe o olho
(ele me lança o seu sorriso!)
ele vê tudo o que ele olha.
Mas eram meus os pesadelos,
de outro lenço
tiro o certeiro
sorriso crescente na noite.
IV. A voz
Era então que as borboletas,
(pelo zelo de suas asas)
invadiam a varanda.
A chuva desmembrava cores
e linhas fugiam nas calçadas,
tintas nas desatentas asas
e até o velho mudava o jeito do olhar.
O antigo arco nos cobria a todos
e uma voz cantava as lendas
do mundo do lado de lá.
IV. O velho
A gente o sentia observando,
de um lado e de outro.
O jeito do olhar experiente
vendo no movimento da gente
fotografias sempre sem cores.
Não eram olhos como os outros.
Retinha a luz que vinha
e devolvia a quem o via.
Tremulava na parede,
o reflexo desgostoso,
que ao seu antigo rosto
dava traços intranquilos.
Era por todos já sabido
o inevitável consumo do ar.
V. O homem
O casaco de couro aparecia na neblina
encharcado nos ombros desgastados
os olhos sorriam cúmplices
de brincadeiras que não compartilharia.
Pisava firme o chão
esse seu lugar predileto.
Pela porta seguia reto
para o quarto e, cerrado,
acendia o cigarro.
Rádio ligado para ouvir notícias
complicadas que eu não entendia
e lendo dormia seu sono profundo
como quem desvia do mundo
num sonho muito antigo.
VI. A mulher que já era poema
Eram seus então os versos:
“Se algum dia eu encontrar
a palavra que traduz
qualquer sentimento puro,
Maria, eu danço na chuva,
sou capaz de casamento...
cadê, cadê o meu pedaço?
Nessas nuvens? Em alguém
por quem todo dia passo?”
Buscava assim a sua Helena.
Admirei de longe a cena
e mais tarde, ao entendê-la,
compreendi então os versos.