domingo, 19 de junho de 2011

O arquiteto de som. (a Victor Lima Fernandes)

Sente o medo seco do universo:
enredo feio e poliverso,
poema de verso disperso:
mastigue o “ema”, sobra-te o “po”,
ele te mastiga se te sentes só,
deperece, imerso, médio.








































Flutua entre os versos:
em fados mal acabados,
piados de uma ave velha.


















“Verde o nunca, verde o verso
no vasto da alta cabeleira
vejo um mundo controverso
verso imundo, mudo o verso.

Converso o instante controverso
com um velho malabares.
Vendo o verso e ele os ares:
correntes secas que atravessam,
velhos males que se enversam.

Nunca o veja, ou vide-o-verso
que o inverso há de surgir:
verde o verso, verde o nunca.”









Sílabas que te silenciam,
letras que te constrangem,
sons são surdezes

















às vezes.

Órbita. (a Cristiane Bastos)

Retina de leitora
no centro de uma praça
percorre a perpétua reformulação.

Linhas e sentidos
espiralando a cada inspiro
a cada expiro.

Teríamos, se mais cem anos
durasse a confluência obscena,
constelarmente,
uma órbita.

Tardes

Navega solitário pelo universo sem pássaros.
Sente a morte lenta se apoderar de seus passos.
Cheira a flor de lítio no decorrer da noite.
Bebe o contrapasso da madrugada ex-poente.

Olhos aliados lamentaram profundamente
ao seu fracasso e seu
desgaste inevitável
lamento de quem sente.

Lambe a terra vez ou outra,
caminha...
Ouve o canto por onde vazam os sons
sopros de bocas desbotadas.

Não ouve, não vê, não sente.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Tarde de outono

A velha parede ao fundo
num imundo verde eterno
imobiliza o desgaste,
o desgosto no rosto
de olhos acidentais na janela.

Ressoam melodias
que não mais se ouvia,
se houve mesmo um tempo
em que se ouvissem.

A velha parede ao fundo
espia das janelas caras curiosas.

O mundo imóvel do lado de fora.
Assim parado há muito tempo.
Na vastidão dos seus ventos
tudo ressoa o eco oco dos mortais.

E o mundo velho não responde,
nem o jardim florido ao redor da janela,
tão mais próximo, fácil de entender.

A velha parede ao fundo
num verde eterno imundo
imobiliza o desgaste.

Tarde de inverno

A verdade enfim este chão que se estende
não há de terminar, eternamente.

Caminha até que só o pó
responda às tuas solas
solitárias.

Quando o verde vier a mente
trouxer saudade da sede que sentia
lambe a terra vez ou outra.

Busca a cada instante
desejar o horizonte
insistentemente realizado.

Quando os pássaros cantarem plenamente
e sentir-se ignorado pelo som,
testa o vento que passa.

Mas tente consciente de um futuro só silente
de apenas esperança
permanente.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Um minuto de silêncio

Ouve os gritos vibrarem do mármore
de tão cinzas lembranças que moem o chão.
O pó que te resta assuma como teu futuro,
já que não verás mais nada depois.
As folhas secas rolam seus ruídos
clandestinos às portas de tua nova morada.
As saudades que terás de janelas
que te acalmem, jamais superarão
a monotonia que não suportas mais,
do silêncio que insiste em seus olhos
do mesmo saber da eternidade
que nunca mais superarás.
Falarás em vão com
a surdez muda da solidão
e quando chorares, então compreenderás
que as lágrimas são de água mais incolor
do que aprendestes quando ainda
estavas afoito de olhar a luz
e tinhas curiosidade pelos sons.
Agora que não há mais tempo
o tempo é tudo o que te resta
e o escândalo da chuva que
jamais atinge o chão
é só o que hás de esperar.

domingo, 12 de setembro de 2010

Romance

Aos Imprestáveis














I. O narrador

Traçarei a pena
lembranças de páginas passadas.
Gole a gole arriscarei o risco
página a página do meu rum.

Houveram, naqueles tempos,
borboletas quase roxas
que voavam como ventos.

Do chão era possível vê-las,
revoando suas cirandas,
sem controle dos destinos
como sorrisos de crianças.

Foram pequenos pontos
se desenhando sinuosos
com rastros semelhantes de luz.


















II. A criança

Do outro lado da rua
de sua pequena estatura observava
o mundo pelas pernas.

Iludia a lógica
esbarrando no céu
sendo o seu oposto.

Os riscos de tijolo
faziam calçada alaranjada
mas quando pisava na linha
ela era amarelinha.









III. O palhaço

“São brincadeiras,
apenas brincadeiras”
E eram meus os pesadelos,
o sorriso crescente na noite.

Seu sorriso
sob a mesa seu sorriso
sorrindo mais alto;
surto a cada curto passo
curto passo e era tarde
pra mudar de esconderijo.

Sob a mesa seu sorriso,
a fina fala zunindo triste,
triste e sorrindo:

“Onde se meteu?
Meu doce palhacinho
onde se meteu?
Mamãe, ele morreu?
Mas ele era amigo meu,
mamãe, onde se meteu
meu doce palhacinho?”



Ponho-me toalha afora.
Saco do bolso
um lenço em movimento,
faço sair do tecido...
(ele me lança o seu sorriso!)
seu desenho colorido:
escorro pelo chão
circulinhos vermelhos!

Saco outro lenço,
este negro como fundo de cartola,
limpo o sebo da lente
de seus oculosinhos
e lhe lanço longe o olho
(ele me lança o seu sorriso!)
ele vê tudo o que ele olha.

Mas eram meus os pesadelos,
de outro lenço
tiro o certeiro
sorriso crescente na noite.


















IV. A voz

Era então que as borboletas,
(pelo zelo de suas asas)
invadiam a varanda.

A chuva desmembrava cores
e linhas fugiam nas calçadas,
tintas nas desatentas asas
e até o velho mudava o jeito do olhar.

O antigo arco nos cobria a todos
e uma voz cantava as lendas
do mundo do lado de lá.


























































IV. O velho

A gente o sentia observando,
de um lado e de outro.
O jeito do olhar experiente
vendo no movimento da gente
fotografias sempre sem cores.

Não eram olhos como os outros.
Retinha a luz que vinha
e devolvia a quem o via.

Tremulava na parede,
o reflexo desgostoso,
que ao seu antigo rosto
dava traços intranquilos.

Era por todos já sabido
o inevitável consumo do ar.















V. O homem

O casaco de couro aparecia na neblina
encharcado nos ombros desgastados
os olhos sorriam cúmplices
de brincadeiras que não compartilharia.

Pisava firme o chão
esse seu lugar predileto.
Pela porta seguia reto
para o quarto e, cerrado,
acendia o cigarro.

Rádio ligado para ouvir notícias
complicadas que eu não entendia
e lendo dormia seu sono profundo
como quem desvia do mundo
num sonho muito antigo.



















VI. A mulher que já era poema

Eram seus então os versos:


“Se algum dia eu encontrar
a palavra que traduz
qualquer sentimento puro,
Maria, eu danço na chuva,

sou capaz de casamento...
cadê, cadê o meu pedaço?
Nessas nuvens? Em alguém
por quem todo dia passo?”

Buscava assim a sua Helena.

Admirei de longe a cena
e mais tarde, ao entendê-la,
compreendi então os versos.